Dagnino, Renato
De acordo com o recém exposto, a agenda decisória da PCT seria uma combinação (média ponderada pelo poder relativo do ator) de quatro agendas particulares: a) da comunidade de pesquisa (agenda da ciência); b) dos governantes (agenda do governo); c) dos empresários (agenda da empresa); e d) da “sociedade em geral” (agenda dos movimentos sociais).
Esta seção apresenta sumariamente aspectos que ajudam a entender como essas agendas foram interagindo e originando o modelo cognitivo e a agenda da PCT. Ela também apresenta elementos da situação atual que servem de base para a exploração que se faz na seção seguinte sobre como se posicionam os atores.
No início dos anos de 1970, analistas da PCT latino-americana destacavam que, ao contrário do que ocorria nos países avançados, ela era pautada por uma agenda distante das demais políticas. Os assuntos de interesse do governo a agenda do governo pouco apareciam na PCT. E de fato, embora tenham existido importantes iniciativas que, através das empresas estatais, lograram dinamizar a relação pesquisa-produção (ou universidade-empresa), a Reforma Gerencial do Estado terminou por inviabilizar novas experiências.
Menor presença tinha a agenda da empresa. Nosso capitalismo periférico e mimético (primeiro, primário-exportador e, depois, de industrialização via substituição de importações) não gerava, ao contrário do que ocorria nos países avançados, uma demanda local por C&T. O que explicava porque a agenda da empresa exercia pouca influência na PCT e porque a da ciência era, por default, dominante. A ausência de um “projeto nacional” fazia com que a agenda do governo não alcançasse um patamar sustentado e com que a dos movimentos sociais, numa sociedade que permanecia desigual e autoritária, se mantivesse latente. Assim, a agenda da PCT se resumia praticamente à agenda da ciência, ou seja, aos temas clássicos de interesse da comunidade científica que, advogavam os cientistas, eram importantes para o desenvolvimento sócio-econômico.
Mas como o diagnóstico já naquela época era de que nosso problema não era de falta de capacidade para desenvolver “boa ciência”, era natural que o viés ofertista conferido à PCT pela comunidade pesquisa, fosse contrabalançado por medidas que visavam vincular a pesquisa universitária pública à empresa. Com isso se esperava alterar a baixa propensão a inovar do empresário latino-americano.
Como o senso comum acadêmico, subestimando a racionalidade do empresário, atribuía esse comportamento à sua “atrasada” percepção do papel da inovação para o aumento do seu lucro e ao ambiente protecionista, a globalização e a abertura comercial neoliberal representaram uma esperança de mudança. O fato de que na periferia do capitalismo esse comportamento não se deve apenas ao padrão mimético da demanda por bens e serviços determinado pela dependência cultural e materializado sob a forma de um modelo de desenvolvimento dependente, mas por uma “forma distinta de produzir mercadorias”, explica porque essa esperança não foi satisfeita.
De fato, contrariando a interpretação de Schumpeter que atribui a dinâmica inovativa à concorrência intercapitalista que se dá na órbita do mercado, o empresário periférico não inova porque na órbita interna à empresa - da produção em que enfrenta seus trabalhadores não é necessário o “progresso tecnológico” que nos países avançados lhe proporciona mais-valia relativa. Políticas concentradoras, ancoradas numa anômala concentração de poder político e econômico, engendraram um mecanismo de inflação-reajuste regulado pelo Estado que levou à deterioração continuada do salário real e à instauração de uma forma de extração da mais-valia (absoluta) que prescinde da inovação.
Ao entender a PCT como uma combinação de agendas diferentes ganha plausibilidade o argumento de que seria a operação desse mecanismo, de inquestionável poder explicativo no plano da racionalidade empresarial, e não simplesmente o padrão cultural mimético (para não falar da idéia de senso comum do “atraso” do empresário periférico), que faria com que, na ausência de um interesse empresarial pelo desenvolvimento de C&T, predominasse a agenda da ciência.
Foi só no final dos anos de 1980, e sem que tivesse se alterado o quadro esboçado acima, que, por iniciativa de acadêmicos partidários da Teoria da Inovação que “estavam” burocratas, assuntos presumivelmente de interesse da empresa e tidos como de importância para o crescimento econômico a agenda da empresa apareceram na agenda da PCT.
A maneira como isso vem acontecendo, com muito escassa participação dos empresários nos fóruns onde se discute a PCT e nos espaços institucionais onde ela é decidida, sugere que essa incorporação esteja ocorrendo menos devido à participação efetiva do ator empresa na sua elaboração do que ao interesse de um segmento do seu tradicional ator dominante - a comunidade de pesquisa. Apelidados de “alto clero das ciências duras” ou de “acadêmicos empreendedores”, e interessados em interagir com as “empresas inovadoras” (que sobreviveram à desindustrialização e à desnacionalização provocada pela abertura), com as “empresas de alta tecnologia” e com as multinacionais intensivas em tecnologia, eles impulsionam, a partir das universidades e dos seus cargos no aparelho de Estado, uma campanha que atenderia ao interesse dos empresários (nacionais, dizem os mais pudicos ou envergonhados). Ela se dá em torno das bandeiras, da interação universidadeempresa, dos parques e pólos tecnológicos, do apoio aos projetos cooperativos, dos spin offs de base tecnológica, dos mecanismos para facilitar a absorção de pessoal pós-graduado pelas empresas etc., como se elas fossem de fato do interesse das empresas locais.
A agenda da ciência vem sendo substituída pelos interesses vocalizados (muitas vezes de modo canhestro e pouco convincente) por um segmento que, via mimetismo e no âmbito de um processo de “transdução” mais abrangente, vem tentando encenar o papel de um outro: a empresa. O qual, embora talvez em processo de diferenciação, permanece ausente. Os dados coletados pela PINTEC-IBGE mostram que aquelas bandeiras não interessam as empresas. Parecem ser apenas reivindicações que convêm àquele segmento.
Guardando uma relação de sinergia com os aspectos ressaltados até aqui, está o modelo cognitivo que ampara essa percepção. Sua característica mais marcante, no plano econômico, são as idéias de que o conhecimento produzido na sociedade deve necessariamente transitar pela empresa para atingir e beneficiar a sociedade (na forma produtos com preços cadentes e qualidade crescente, empregos qualificados com salários crescentes, impostos que revertem para a sociedade promovendo a competitividade sistêmica, etc). E de que a compulsão a inovar para maximizar o lucro seria o motor de um círculo virtuoso de competitividade das empresas, das nações, do bem-estar dos seus cidadãos e dos habitantes do planeta.
Esse elemento do modelo cognitivo com o qual se elabora a PCT está associado a outra idéia de senso comum de que a Tecnociência (conceito que denota o fato de que 70% do gasto mundial em pesquisa é privado e que, deste, 70% é realizado por multinacionais) é neutra. Isto é, que depois de ser produzida num dado ambiente (em que, como tenho argumentado, predominam valores e interesses que como é esperado a “contaminam” com o “germe” da exclusão social), ela pode ter a sua utilização orientada para propósitos de inclusão. Apesar crescentemente refutados pelos estudiosos, os mitos da Neutralidade e do Determinismo da Tecnociência continuam ocupando um lugar central no modelo cognitivo da PCT.
Esta seção se desenvolve em torno da idéia de que o discurso dos atores envolvidos com a política é o primeiro nível de expressão do seu modelo cognitivo. E que sua análise, embora sem seguir os cânones do campo disciplinar da Análise do Discurso, permite identificar aspectos que, de modo menos preciso e extremado, vão aparecer na maneira como eles irão tentar conformar a agenda decisória e influenciar a trajetória da política.
Ela se concentra por isso, na análise de três discursos recentes sobre a PCT que, até o momento em que escrevo, parecem configurar as suas trajetórias possíveis.
Antes de iniciar este item, é importante ressaltar que o que aqui se analisa não se refere à agenda do governo, mas sim a de um dos atores que influencia (ou deveria influenciar) na sua conformação, o Presidente da República. E que, entretanto, este discurso não parece expressar a agenda do governo. Situado numa posição bastante crítica em relação a PCT vigente, ele expressa com mais propriedade a agenda dos movimentos sociais.
Embora não tenha repercutido na mídia especializada, o discurso do Presidente no INPE em 13 de março, por indicar o conteúdo que ele aparentemente gostaria de conferir à PCT e pela sua densidade política (politics), ele se caracteriza como o evento recente mais importante da nossa política (policy) de C&T. Na verdade, independentemente da simpatia ou antipatia que se tenha pela sua pessoa, há que reconhecer que é a primeira vez que um governante se refere aos aspectos políticos que cercam essa política pública. Os quais, é importante enfatizar, quase nunca são referidos pelos que com ela se envolvem.
Começo ressaltando o elevado simbolismo contido na forma como o Presidente iniciou o seu discurso, depois de escutar (com uma certa impaciência, a julgar pela forma como deixava escorregar entre os dedos um papel dobrado que batia na mesa) o longo discurso do Ministro de C&T.
No que interpreto como uma insatisfação a respeito de como está sendo utilizado o potencial científico e tecnológico das instituições públicas de ensino e de pesquisa e de como tem sido orientada a PCT e, em particular, como uma reação ao contumaz tom apologético com que se havia destacado os resultados do Programa do Satélite Sino-Brasileiro, o Presidente declarou: “Eu não vou ler o [meu] discurso porque é uma cópia fiel do discurso que o Sérgio Rezende leu aqui. Certamente, quem fez o meu fez o dele, ou ele fez o meu e tirou xerox para facilitar a vida dele.”
Com a aguda ironia bem-humorada que o caracteriza (que arrancou tímidos risos da sisuda platéia), o Presidente habilmente anunciou a idéia-força que marcou sua fala: não era hora de comemoração, mas de uma auto-crítica que, como cidadãos-pesquisadores, cabia à comunidade de pesquisa ali reunida fazer.
De fato, ele prosseguiu dizendo: “...na medida em que nós não fizemos as lições que outros [países] fizeram [alfabetização, reforma agrária, distribuição de renda] nós somos um país dividido entre gente que participa do Brasil de ponta, do Brasil tecnológico, do Brasil avançado, como todos vocês participam, e, ao mesmo tempo, nós temos um País em que o estoque de pessoas que ficaram marginalizadas começa a causar preocupação e começa a causar incertezas na sociedade brasileira.” E, completou: “O desafio que está colocado para nós, agora, depois de visitar o Inpe é provar que nós somos capazes de fazer isso...”.
Lançado perante aquela platéia, o desafio parece significar que “agora”, depois de ter usufruído (desde o regime militar) de um tratamento privilegiado - seja em relação ao plano internacional, seja em comparação a outros segmentos sociais , a comunidade de pesquisa deve contribuir, com o conhecimento que a sociedade lhe permitiu adquirir, para “fazer as lições” da “alfabetização, reforma agrária, distribuição de renda”.
Com a autoridade que a democracia confere a um Presidente para orientar as políticas de seu governo, mas que até agora nunca havia sido empregada no âmbito da PCT, ele seguiu aludindo ao que provavelmente tinha lido no discurso que não fez: “O resultado que nós temos hoje, de coisas extraordinárias que eu tenho visitado no Brasil, é uma conquista de todos nós. Mas, às vezes, as coisas que não dão certo de pronto, nós carimbamos um responsável, tiramos o corpo fora e fica por conta de alguém que nós queremos responsabilizar.”
Interpreto essa declaração como uma censura à postura recorrente da comunidade de pesquisa de atribuir a outrem (à ganância das elites, ao “imperialismo”, aos políticos corruptos, quando não ao que considera uma falta de consciência da sociedade acerca da importância da C&T que impede que mais recursos sejam alocados para a realização de sua atividade) a responsabilidade pela calamidade social que nos cerca.
Ao tentar “tirar o corpo fora”, a comunidade de pesquisa estaria se eximindo da responsabilidade de seguir pesquisando, divulgando e ensinando um conhecimento cuja finalidade é alavancar um processo de acumulação de riqueza concentrador e excludente. E por não reorientar sua agenda de pesquisa para atacar os problemas da maioria da população. E, ainda, por não ser capaz de reconhecer que não sabe como enfrentar as complexas questões tecnológicas, científicas e ambientais associadas à duplicação do Brasil necessária para abrigar os não-cidadãos de hoje.
Entendo a pergunta que o Presidente formula “...não está na hora da nossa consciência assumir um compromisso, com este País, um pouco mais além da nossa própria sobrevivência enquanto seres humanos e enquanto pesquisadores” como um chamamento à comunidade de pesquisa de esquerda. Àqueles que, sentados naquela sala, têm consciência de que é necessário mudar, mas que seguem iludidos pelos mitos da Neutralidade da Ciência e do Determinismo Tecnológico, ou que não têm ainda a coragem de assumir que pertencer ao “main stream” ou figurar no “science citation index” não é suficiente para construir um País decente.
O Presidente deu mais um recado a ser levado em conta quando se reflete sobre as perspectivas da PCT: “...durante muitas décadas o Brasil não combinou as oportunidades que teve de aproveitar o crescimento para permitir que houvesse uma certa igualdade de oportunidades no conjunto da sociedade.” A julgar pelo tom do seu discurso, ele parecia sinalizar para uma inflexão na PCT, tão desejada pela comunidade de pesquisa de esquerda, que abra espaço para seu engajamento na construção de um Brasil mais justo e democrático.
O recado contido no discurso do Presidente parece ter sido bem entendido por influentes policy makers pertencentes à comunidade de pesquisa que participaram no seminário “O Brasil no século 21” realizado em 28 de março, na FEA-USP, sob a coordenação de Delfim Netto.
Suas opiniões, que apareceram no boletim da Fapesp sob o sugestivo ainda que desgastado título de Motores do Desenvolvimento, si non é vero, é bene trovatto, respondem negativamente à pergunta que fez o Presidente: “...não está na hora da nossa consciência assumir um compromisso, com este País, um pouco mais além da nossa própria sobrevivência enquanto seres humanos e enquanto pesquisadores?”
Escolhi e cito seis delas que expressam as duas agendas dominantes da PCT. A agenda da ciência, defendida pelos que querem manter a orientação hegemônica até dez anos atrás e a da empresa, dos que também no âmbito da comunidade de pesquisa vem tentando legitimar-se por esta via. De fato, embora sejam conflitantes, elas se têm mostrado negociáveis. E antagônicas à démodé agenda do governo (que se mostrou compatível com a agenda da ciência no período militar) e à latente agenda dos movimentos sociais (que ganha força com o discurso do Presidente).
A primeira, é a de que a “publicação de trabalhos em revistas de circulação internacional é um grande impulso para o desenvolvimento científico e tecnológico”. Ela contém duas idéias crescentemente questionadas, mas que continuam a ser olimpicamente repetidos pelos partidários da agenda da ciência”. Na realidade, a publicação de trabalhos é resultado e não impulso (ou causa) para o desenvolvimento científico. E o desenvolvimento tecnológico, tal como têm mostrado vários países, tem muito pouco a ver com a publicação de trabalhos científicos; especialmente em países periféricos.
A segunda opinião é de que “na origem histórica da universidade está a necessidade de solucionar problemas da sociedade e de inserir novos produtos no mercado...”. Novamente, dois equívocos. Quem trabalha na universidade deveria saber que nem na origem, nem na missão atual da universidade consta “inserir novos produtos no mercado”. Esta idéia tem sido vendida pelos partidários da agenda da empresa que tentam orientar a PCT para o mercado usando a falácia neoliberal de que isso contribuiria para “solucionar problemas da sociedade”.
Ligada a essa, uma terceira imputa a culpa pela “falta de interação com o setor produtivo” (por eufemismo, a empresa privada) dizendo que ela “... se tornou uma lógica própria das instituições de ensino no país” que “...não favorece a difusão do conhecimento para solucionar problemas econômicos ou sociais". Como se o nosso capitalismo periférico, dependente e imitativo, que combina suas faces primário-exportadora e substituidora de importações com uma brutal concentração de renda, não se caracterizasse por uma, economicamente racional, aversão à inovação tecnológica. E como se “solucionar problemas econômicos” fosse preocupação da empresa. E mais, como se os “sociais” pudessem ser resolvidos mediante aquela “interação”.
A quarta opinião alega que “a universidade tem papel fundamental para a criação do conhecimento, mas, para que um produto ou processo inovador sejam aceitos pelo mercado, a pesquisa deve ser ... um assunto dominado primordialmente pelas empresas”. De novo aparece o equívoco de limitar o papel da universidade pública (pois disto se trata) à criação de conhecimento para satisfazer à agenda da empresa. Como se não existissem outras agendas de atores que contribuem mais para a sua existência, que demandam soluções cientificamente mais originais e complexas e com maior impacto social e econômico para o País.
Associada a essa, uma quinta salienta que “precisaríamos de pelo menos 150 mil cientistas nas empresas para transformar nosso conhecimento em desenvolvimento econômico”. Ela reitera a solução de compromisso entre as duas agendas hoje dominantes: precisamos oferecer mais mestres e doutores para satisfazer essa demanda do mercado, de 150 mil. Entende-se mal o que seja oferta e demanda: trabalham em atividades de P&D nas empresas públicas e privadas o equivalente a 3 mil mestres e doutores. Se esse estoque aumentar magicamente - 10% ao longo deste ano, haverá uma demanda adicional de 300; quando então a oferta de mestres e doutores em ciências e engenharias (que cresce 10% ao ano) será de 30 mil. Essa relação de 1:100 mostra o absurdo a que a desconexão entre as agendas de nossa PCT nos têm levado. E o equívoco que seria tentar equilibrar esse desajuste acionando apenas aquelas duas agendas.
Sobretudo num país que, como ressaltou o Presidente, “não fez as lições da alfabetização, reforma agrária, distribuição de renda” e que, por isso, possui agendas latentes (do governo e dos movimentos sociais) a serem incorporadas à PCT. Para que, entre tantas outras coisas, a sociedade possa aproveitar o investimento que realizou na formação dos seus mestres e doutores.
Mas para que isso ocorra, é necessário que a comunidade de pesquisa de esquerda se oponha à solução de compromisso entre as duas agendas hoje dominantes (da ciência e da empresa) que a sexta opinião alude: “...quando empresas estrangeiras têm interesse em parcerias com universidades brasileiras, além de seus dirigentes procurarem entidades que mais formam mestres e doutores, a lista de publicações dos pesquisadores é um dos requisitos básicos”. E que se engaje na construção de uma PCT em que as “empresas estrangeiras” não sejam o ator a ser beneficiado à custa de uma competição sem sentido entre as universidades públicas e seus professores.
A terceira peça que informa esta análise também apareceu, e é sintomático, no boletim da Fapesp, em 26 de abril. Sob o título “Do consenso à ação” a matéria comenta os resultados do 2º Congresso Brasileiro de Inovação na Indústria, organizado por três das instituições mais representativas do mundo empresarial - a Confederação Nacional da Indústria, o Instituto Euvaldo Lodi e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial - encerrada no dia anterior e “com a presença de 700 empresários, acadêmicos e representantes do governo”.
O consenso, que segundo o boletim da Fapesp, “predomina entre os atores envolvidos com o desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil, é que a indústria brasileira precisa de mais inovação”. O que, tendo em vista o que ela, de modo restritivo, considera “atores envolvidos” e “desenvolvimento científico e tecnológico”, não chega a surpreender.
Outra matéria disponibilizada no sítio da CNI repete o mantra de que “os investimentos em P&D são imprescindíveis para ampliar a participação do Brasil no mercado internacional e acelerar o ritmo de crescimento da economia” e aponta as cinco “condições” para o aumento da inovação na empresa. Todas elas referem-se a medidas de política pública e compreendem a ampliação dos recursos disponibilizados pelas agências e pela renúncia fiscal, a modernização do Instituto Nacional de Propriedade Industrial, o aumento da interação dos órgãos voltados ao apoio da inovação com aqueles de controle do orçamento, e a utilização do poder de compra do Estado para estimular a P&D. O que tampouco chega a surpreender. Sobretudo tendo em vista a maneira como os empresários brasileiros costumam se pronunciar a respeito de temas importantes para o País: listando as reivindicações que querem ver atendidas pelo governo sem no entanto comprometerem-se com nada mais do que uma alusão difusa ao seu papel como promotores do crescimento econômico e do bem-estar social; e, ultimamente, e da competitividade...
Voltando à matéria divulgada pela Fapesp, vê-se que ela destaca a opinião de quatro pessoas que tiveram uma participação de relevo no Congresso; o que atesta o prestígio que gozam no meio empresarial. A sessão em que participaram - Agenda Empresarial e Prospectiva Tecnológica e Industrial era, a julgar pelo seu título, indicaria os balizamentos estratégicos que o empresariado deveria adotar para, no futuro prospectado, aproveitando as “condições” que enunciaram, cumprir o seu papel.
Mais do que analisar o discurso dessas pessoas, mesmo porque isto não adicionaria nada ao já comentado, interessa aqui refletir sobre quem são elas, já que isso pode servir como algo parecido com uma evidência empírica do que tenho dito a respeito de qual é o ator que está tentando introduzir a agenda da empresa na PCT.
O que pode espantar alguns (mas que não surpreende os que me acompanham nesta análise) é que apesar do caráter da sessão e do Congresso, nenhum deles é empresário!
À semelhança dos que proferiram o discurso analisado no item anterior, dois são conhecidos membros da comunidade de pesquisa das duas mais prestigiosas universidades paulistas. Como pesquisadores, dedicam-se há bastante tempo à análise da PCT segundo uma perspectiva que privilegia o interesse das empresas, e têm ocupado cargos importantes na administração federal e estadual. O terceiro, também com alta titulação acadêmica e membro da comunidade de pesquisa, é funcionário de carreira de uma das instituições públicas de pesquisa mais importantes do País e ocupa hoje a coordenação de uma organização “quase-pública” responsável em grande medida, depois da lobotomização pela qual passou o Estado brasileiro, pela orientação estratégica da PCT e de outras políticas públicas intensivas em conhecimento. O quarto, também pós-graduado e com publicações em revistas especializadas, embora tenha trabalhado numa grande empresa estrangeira sediada no Brasil, se desempenha há alguns anos como um importante executivo do “maior complexo de educação profissional da América Latina”.
Fica ao leitor a tarefa de responder a pergunta de por que um tema com a importância do abordado na sessão a que se refere a matéria divulgada pela Fapesp não foi tratado por empresários e sim por membros da comunidade de pesquisa. As principais “pistas” estão no penúltimo parágrafo da segunda seção e nos quatro últimos da terceira.
Para encerrar este ponto, agrego que por serem personagens influentes do processo decisório da PCT eles são parte importante da correia de transmissão através da qual chegam ao aparelho de Estado as demandas dos atores, no caso, os empresários, que pretendem dela se beneficiar. E por onde saem os recursos que irão diretamente beneficiá-los.Concluindo, ressalto a distância existente entre o que sinalizou o Presidente e a visão daqueles membros da comunidade de pesquisa que, apesar de sua fé na empresa e no mercado, do seu alinhamento ideológico-político com forças conservadoras, de sua participação destacada no governo FHC e da divergência que têm com a agenda dos movimentos sociais, continuam influenciando uma política pública chave para a consecução das metas do atual governo. A manutenção dessa tendência é uma das perspectivas da PCT.
Uma outra poderá se fortalecer caso o segmento de esquerda da comunidade de pesquisa, que se identifica com os interesses (políticos, econômicos) e valores (ambientais, morais, étnicos, de gênero) dos movimentos sociais partidários de um estilo alternativo de desenvolvimento for capaz de incorporá-los às suas agendas de pesquisa e docência e ao processo decisório da PCT. Dessas alianças, emergirão linhas de atuação custeadas pelo governo em condições pelo menos análogas às que dispõem a empresa privada, a serem implementadas em institutos públicos de ensino e de pesquisa. Um conjunto alternativo de critérios, variáveis, procedimentos e estratégias, que ao invés do hoje dominante, seja capaz de construir a base cognitiva necessária à implementação daquele estilo alternativo de desenvolvimento, irá sendo consolidado.
Viabilizar essa outra perspectiva demanda um movimento distinto do que estamos assistindo, em que as agendas da ciência e da empresa se estão compactuando. A agenda dos movimentos sociais, pela sua natureza, terá que ser adotada com principalidade pelo governo, subordinando o simulacro de agenda da empresa que anda em busca de um ator a “burguesia nacional” em si mesmo artificial e anacrônico. Ao “reprojetar” radicalmente a agenda da ciência (hoje um espectro periférico do que o capitalismo global engendra para combinar de forma suicida o consumismo exacerbado e a obsolescência planejada) ela será capaz de contribuir para alavancar o cenário da democratização que a sociedade busca construir.
O primeiro passo, conseguir que os conflitos latentes implícitos na agenda dos movimentos sociais se explicitem como conflitos abertos no processo decisório da PCT, demanda da comunidade de pesquisa de esquerda uma politização desta política.